reportagem especial

Morte de abelhas tem efeitos catastróficos, e agrotóxicos aparecem em 90% das amostras do inseto que chegam à UFSM

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Foto: Renan Mattos (Diário)

A perda econômica é explícita, e os prejuízos à natureza e ao equilíbrio dos ecossistemas é catastrófico quando se depara com a incidência da mortalidade das abelhas. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo dependem delas, bem como a polinização é crucial não só para os alimentos, bem como para a reprodução de plantas usadas para alimentar o gado e outros animais, e para manter a diversidade genética das plantas com flores.

Não é novidade que o Rio Grande do Sul convive com o crescente desaparecimento ou a morte de abelhas. Desde o ano passado, porém, casos têm aumentado, segundo informam especialistas da área ambiental. Na Região Central, municípios como Santiago, São Gabriel, Rosário do Sul e Santa Margarida do Sul têm apicultores que já estimam perda total na "safra de mel".

Um laudo emitido no dia 11 de outubro pelo professor aposentado de Apicultura da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Silvio Lengler aponta que, em uma região onde a produção média é de 50kg por colmeia/ano, e o valor do kg de mel é de R$ 14 para o mercado externo e R$ 20 para o mercado interno, há um prejuízo de R$ 700 a R$ 1 mil por enxame perdido. Quanto à polinização de lavouras de soja, a falta de cada enxame pode causar um prejuízo de até quatro sacas de soja por hectare.


Foto: Renan Mattos (Diário)


Pesquisas feitas no Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp) também da UFSM, trazem outra estatística desoladora: a presença de agrotóxicos, sobretudo do inseticida Fipronil, aparece em 90% das amostras de abelhas mortas.

CONSCIENTIZAÇÃO

Alonso Duarte de Andrade, engenheiro agrônomo e fiscal agropecuário estadual, relata que em pelo menos 11 municípios do Estado há caso de amostras em que a morte das abelhas tem como causa os agrotóxicos. Ocorre ainda de uma amostra ter até cinco agrotóxicos diferentes:

- O produtor tem de fazer o manejo adequado dos inseticidas permitidos e nas épocas adequadas. Sabe-se que 40% da polinização da própria soja, por exemplo, é feita pelas abelhas, que são uma ferramenta importantíssima, e é preciso essa conscientização. Conhecemos um exemplo de uma lavoura em uma cidade do Mato Grosso, em que 4 mil caixas de abelha foram colocadas em uma lavoura de soja, e o apicultor não perdeu uma caixa. É possível agricultores e apicultores conviverem, e essa harmonia é bom para todos.

Outro gargalo que envolve a problemática é a subnotificação dos casos. Conforme Andrade, é fundamental procurar as inspetorias agropecuárias dos municípios, e registrar boletim de ocorrência junto à Polícia Civil. A reiteração das notificações reforçam os subsídios para fiscalização seja na esfera criminal, ambiental e administrativa. As multas que podem decorrer de autos de infração variam de R$ 2 mil e 100 mil.

Segundo o chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários do Estado, Rafael Friederich Lima, a fiscalização tem sido feita, mas não um levantamento do número de infrações, devido a quantidade de casos em constante observação e os diferentes motivos de cada situação. Outro enfrentamento tem sido à falta de recursos orçamentário para análises de amostras que ficam represadas e que deveriam ser encaminhadas aos laboratórios.


PRESENÇA DE AGROTÓXICOS APARECE EM MAIS DE 90% DAS AMOSTRAS QUE CHEGAM À UFSM

Foto: Renan Mattos (Diário)

É para o Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp), do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que são enviadas amostras que podem identificar os fatores que causam a morte das abelhas de diversas cidades. Lá, projetos visam o desenvolvimento de métodos e o monitoramento da presença de resíduos de agrotóxicos em amostras de abelhas e produtos apícolas como mel, geleia real e pólen. Entre estes, destaca-se o projeto Estabelecimento e Aplicação de Métodos Multirresíduo para Determinação de Agrotóxicos em Abelhas e Pólen Apícola, o qual é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).

Conforme os pesquisadores do Larp, a denominada Síndrome do Colapso das Colônias ou CCD, na sigla em inglês (Colony Collapse Desorder), caracteriza-se pelo desaparecimento repentino de abelhas operárias em colônias da espécie de abelha Apis mellifera. As prováveis causas do desaparecimento são uma combinação de fatores, que podem incluir estresse provocado pelo transporte, manejo inadequado das colônias, uso incorreto de agrotóxicos, má nutrição e doenças.

Nas demandas de análises, em casos de mortandade de abelhas, recebidas entre 2020 e 2021 pelo Larp/UFSM, mais de 90% das amostras apresentam resíduos de agrotóxicos, em especial do inseticida fipronil.

- Há mais de cinco anos, o Larp tem recebido demandas por análises em casos de mortandade de abelhas ocorridas no Rio Grande do Sul. Porém, nos últimos dois anos, ocorreu um aumento expressivo. É importante salientar que este problema é conhecido há bastante tempo em países como França, Alemanha e Espanha, o que levou a proibição ou restrição de uso de alguns agrotóxicos - relata o professor Osmar Prestes.

Inseticidas como imidacloprido, clotianidina e tiametoxan têm efeito tóxico, o que já resultou na restrição de uso destes agrotóxicos em diferentes países por causar a morte de insetos polinizadores. A propósito, uma recente decisão no Estado de Santa Catarina, no dia 24 de agosto deste ano, proibiu a aplicação do fipronil nas formas que envolvam o uso foliar deste ingrediente ativo.

Atualmente, o Larp, coordenado pelos professores Renato Zanellla, Martha Adaime e Osmar Prestes, e que também conta com pesquisas de alunos de mestrado e doutorado vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Química (PPGQ) da UFSM, recebe demandas por análises em abelhas provenientes das mais diversas regiões do Estado e do Brasil, incluindo Santa Catarina, Bahia, Espírito Santo e Mato Grosso.

NO ESTADO

Ainda em junho deste ano, o governo do Estado, por meio do site institucional, informou que entre janeiro e abril de 2021, em 77% das amostras de colmeias com mortandade de abelhas no Rio Grande do Sul havia o ingrediente ativo fipronil utilizado em vários tipos de cultura. O resultado foi divulgado pelo chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr), Rafael Friederich de Lima, durante o webinar "Deriva de agrotóxicos, proteção de abelhas e culturas sensíveis", promovido pelo Crea-PR e pela Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar). No período avaliado, foram coletadas 18 amostras de colmeias que registraram mortandade, algumas em 100% das abelhas. O material foi analisado pelo Larp.


"PARA QUEM CRESCEU E VIVE EM MEIO À APICULTURA, UMA CENA ASSIM DÓI"

Foto: Renan Mattos (Diário)

O lamento de Lázaro Davi Machado dos Santos (nas fotos), 38 anos, diante de milhares de abelhas mortas em um apiário em São Gabriel, com cerca de 150 caixas, não é isolado. Na Região Central, como Rosário do Sul e Santa Margarida do Sul, bem como municípios de outras regiões sofrem do mesmo motivo. Até o momento, foram relatados 780 casos à Câmara Técnica de Apicultura da Secretaria de Agricultura do Estado.

- Para a gente que cresceu e vive em meio à apicultura uma cena assim entristece. Sou natural de Lajeado e nossa família vivia da fumicultura. Viemos para São Gabriel quando eu tinha 2 anos, depois de desenvolver uma alergia grave, com risco de morte por conta do "veneno do fumo". Meu pai chegou a trabalhar no comércio em outras atividades, mas, há mais de 30 anos, trabalhamos com abelhas e mel. - desabafa Lázaro que seguiu a profissão do pai, Aldo Machado dos Santos, que atualmente é coordenador da Câmara de Apicultura do Estado e da Cooperativa Apícola do Pampa Gaúcho.


Foto: Renan Mattos (Diário)

- Estão passando fecomil junto com secante e o pior é que o Estado não tem recurso para fazer a análise, passar aos apicultores os laudos e eles poderem reivindicar na Justiça seus prejuízos. O laudo precisa ser de um órgão oficial que vá lá e recolha as abelhas, porque, senão, qualquer advogado derruba alguma ação de indenização. Os apicultores não fazem mais os registros porque não tem o laudo que comprova - critica Aldo.

Outro apicultor de Rosário do Sul, que também convive com o mesmo problema estima que a recuperação dos prejuízos pode levar até 8 meses:

- No domingo (10 de agosto), fui em um apiário e todas as abelhas estavam envenenadas de novo. O caseiro me falou que passaram agrotóxicos de avião na semana anterior. Não sobrou nada. Onde a gente chega, sempre uma surpresa. Já são três apiários em regiões diferentes. É um prejuízo grande, pelas caixas de mel que as abelhas poderiam produzir, sem falar do tempo dedicado, nos funcionários que contratamos. As abelhas que sobram, devem levar uns oito meses para se recuperar. Está ficando insustentável essa situação - relata Letiere da Rosa, 40 anos.

Gustavo Nogueira Diehl, médico veterinário do setor de Sanidade Apícola da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do RS, os laudos não estão sendo feitos desde julho deste ano, em razão da falta de recursos. Não foi informado o quantitativo de amostras pendentes para análise e a posição do setor sobre as últimas mortes.

Na última sexta, o Diário entrou em contato com o Ministério Público de São Gabriel, mas o promotor responsável pelo assunto estava realizando júri ao longo do dia e não pôde retornar.


PROJETO JUNTO AO MINISTÉRIO PÚBLICO VISA MONITORAR MORTE DE INSETOS

A partir de inquérito civil do Ministério Público do Estado (MP-RS) sobre a relação entre a mortandade de abelhas com o uso do fipronil, foi criado o Projeto Sistema de Informação e Monitoramento de Abelhas do Rio Grande do Sul: (SIM-Abelhas), que teve início depois de apicultores terem acionado o Ministério Público após mortandade de abelhas a partir de 2017. SIM Abelhas. O comitê gestor do projeto é composto, além do MP-RS, DA Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e empresas do setor de agrotóxicos.

O SIM Abelhas visa implementar polos em dez regiões geográficas do Estado, com o objetivo de monitorar, de forma remota, o fluxo e atividades das abelhas, para ver quais são os períodos do ano com maior ou menor movimentação e o que tem implicado nas mortes. O projeto também pretende monitorar a presença de resíduos de agrotóxicos no mel, no pólen e em abelhas campeiras, além de caracterizar e monitorar microrganismos e ectoparasitas que possam causar doenças às colmeias.

Foto: Renan Mattos (Diário)

Na Comarca de Santa Maria, que também abrange os municípios de Itaara, Silveira Martins e São Martinho da Serra não há investigações em curso.

MEIO BILHÃO NO BRASIL

Entre o final de 2018 e o começo de 2019, meio bilhão de abelhas morreram em alguns estados do País. Foram 400 milhões no Rio Grande do Sul, 7 milhões em São Paulo, 50 milhões em Santa Catarina e 45 milhões em Mato Grosso do Sul, segundo estimativas de associações de apicultura, secretarias de Agricultura e pesquisas realizadas por universidades, conforme o levantamento divulgado pela Repórter Brasil, em parceria com a Agência Pública.


"75% DOS CULTIVOS DESTINADOS À ALIMENTAÇÃO HUMANA NO MUNDO DEPENDEM DAS ABELHAS"

Foto: Renan Mattos (Diário)

Zootecnista e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que integra a equipe do Laboratório de Apicultura e Meliponicultura (Labmel), Fernanda Cristina Breda Mello realiza trabalhos de pesquisas relacionados a manejo e alimentação das abelhas e extração da própolis. A pesquisadora ressalta a importância das abelhas que saem para coletar néctar e pólen das plantas e, que quando contaminadas, perdem orientação e, na maioria das vezes, não retornam para as colmeias. Essa colmeia irá enfraquecer por falta de alimento e não produzirá mel.

Segundo a pesquisadora, a morte desses insetos é preocupante uma vez que causa um enorme prejuízo ao apicultor, que trabalhou para manter suas abelhas saudáveis durante todo o período de outono/inverno, com a expectativa de produtividade no período de safra apícola, e vê suas colônias morrerem de uma hora para outra - a perda anual para o apicultor de R$ 1 mil a R$ 1,5 mil por colmeia.

- Neste caso, todo o mel produzido, bem como os equipamentos apícolas são descartados, ou seja, esse mel não chega ao consumidor. Um outro lado ainda mais preocupante é a perda de milhares de agentes polinizadores, importantes para manutenção da biodiversidade vegetal e produção de diversos alimentos. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo dependem das abelhas.

Em Santa Maria, a procedência do mel de é múltipla, e o mel comercializado no município é inspecionado pelos órgãos de fiscalização, conforme afirma a professora Fernanda.

Conforme dois apicultores consultados pela reportagem do Diário, em 2021, não foram registrados casos de morte de abelhas na cidade.

OCORRÊNCIAS AOS BOMBEIROS

 Somente entre o dia 11 e o dia 14, de outubro, o 4º Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Maria atendeu a oito chamados para retirada de enxames de insetos, a maioria de abelhas. Conforme o sargento Gilson Martins Dias, as ocorrências desta natureza intensificam-se entre setembro e novembro. A orientação é manter-se afastado dos locais e evitar a utilização de produtos para matar os insetos:

- É uma época de polinização, e as abelhas migram bastante. Atuamos na eliminação de riscos às pessoas, principalmente às crianças, e orientamos a fechar os locais e ficar longe do enxame. Em muitos casos, fizemos contato com apicultores para a retirada correta, sem prejuízo aos animais.



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